Domingo 1983









Passavam poucos minutos das nove.
Adivinhava-se sol radioso ante a claridade emanada pelo dia imediatamente anterior àquele que seria o primeiro do resto das nossas vidas, segunda fase do casamento, mais dedicada aos filhos, à grande família construída, torcer pela vida.
Fazer tudo o que um casal feliz deveria ser capaz de construir à sua volta.
Um leve bater de nós de dedos desperta-nos, definitivamente.
- Quem é?
- Mãe! É uma chamada para o Pai.
- Desculpem acordar-vos, mas parece urgente. É do Seixal, da GNR! Ainda esbocei uma negativa para não vos incomodar, mas a voz do outro lado foi explícita: “É muito urgente”.
A filha parecia consternada. Os seus 10 anos de suavidade, de olhos castanhos clarividentes, mostravam o sentido das suas cautelas com
os intrusos daquele soalheiro domingo que se pretendia pacato e descansado.
Levantei-me lesto.
- Não te levantes, Elizabeth, eu regresso já ao quente da cama.
Percorro o corredor que termina nas escadas de acesso às partes sociais que se estendem por todo o rés-do-chão.
Enquanto descia reparo no vitral que ilumina os degraus, confirmando a claridade soalheira daquele pacato domingo.
A imagem de Santo António, esculpido em madeira, de uma leveza etérea, descansa na mesa ao lado do telefone.
Ela representa três anos de vidas em conjunto, de uma felicidade diariamente conquistada, com um sabor requintado de perene intensidade, que só os justos a ela têm
direito.
Era a marca da devoção continuada e plenamente sentida da família, representando a harmonia e agradecimento da dádiva dos muito seus cinco filhos.
Levanta o escutador do telefone antigo, outra relíquia que Elizabeth adquirira numa feira de antiguidades.
- Fala o Sargento de Dia à esquadra da GNR, no Seixal! O Senhor precisa de vir com urgência à empresa. Mas passe pela esquadra que o desejamos acompanhar! A sua empresa foi vandalizada!
- Santo Deus! O que está acontecendo agora?
Subi a correr a escada, galgando degraus.
- Acho que acabámos de perder tudo!
A partir daquele momento, tudo aconteceu em turbilhão.
A rápida explicação do que sucedera; a ida de jipe da guarda até aos terrenos da empresa; a visão dos acontecimentos.
O panorama terrível, o grande edifício que se sobrepunha à vista, a nave onde se manuseavam as conservas de peixe escancarada, papéis, fios elétricos, latas, cestas, espalhados pelo chão.
A destruição completa do que fora uma fábrica das mais modernas do país, máquinas arrancadas, desaparecidas, cubas de esterilização vandalizadas, escritórios arrasados, documentos destruídos.
- Santo Deus! Acabou o sonho!
O regresso a Oeiras foi triste.

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