Um conto!
A lareira crepitava numa
miríade de tonalidades. Hipnotizada, Rita, olhava-a fixamente.
Estava sozinha, sentada num confortável sofá. Durante minutos
manteve este apelo afetivo consumindo sua mente. A lareira era
enorme, uns bons dois metros de cavidade onde a chama quente devorava
a lenha num ardor entusiasta. Sentiu as pernas dormentes. Esse
prurido permitiu-lhe sair da forçada contemplação. Retirou-as de
baixo de si e esticou-se. A carência de sensibilidade manteve-se,
agora num estranho entorpecimento que a envolveu totalmente.
Estendeu-se no sofá. Reparou que era suficientemente comprido para a
deixar completamente estendida, sem tocar com os pés, ao fundo, no
repouso de braços. A modorra instalou-se. Fechou os olhos, a
dormência ia desaparecendo aos poucos. As suas pálpebras cerradas
viam o crepitar das achas amarelo-ouro do fogo que aquecia o lado
esquerdo do corpo. Mais uns minutos se passaram. O silêncio era
total, tão-somente o estalar das faíscas da madeira incendiada se
fazia ouvir, como sal que se deita na frigideira. Abriu os olhos,
mirou o teto sobre si, branco, com uma sanca de sulcos variados
rodeando-o, ao centro, um entrelaçado de gesso num curioso desenho
de linhas. Nunca o tinha visto. Deambulou os olhos pela sala. A
posição permitia percecionar ao lado direito da lareira mais um
sofá, este individual, ao lado um candeeiro de madeira de pé alto
com abajur bege de seis folhas terminando numa franja comprida, uma
mesa de pé de galo onde diversas fotografias se exibiam. Um
cortinado de linho cru semicerrando a janela donde jorrava luz. No
exterior, copas de árvores em fundo de cena. Soergueu-se e olhou o
resto da sala.
- Onde estou eu?
A pergunta que formulou ecoou
sem resposta. Deu um pulo do sofá e levantou-se. A sensibilidade nos
membros já passara. O calor da lareira invadiu-a, tão penetrante
que momentaneamente voltou a encarar o foguear da madeira. Passou as
mãos pela cara e sentiu-a quente.
- Quem sou eu?
Em passo apressado transpôs
os cinco metros que distavam as duas janelas ao fundo da divisão,
pisando uma carpete que tapava quase a totalidade das tabuas
corridas. Tropeçou num corpo estendido. Um homem! A mancha de cor
escura disse-lhe que nada de bom acontecera. Ficou parada, olhando-o.
A sala rodopiou sobre a cabeça e seu corpo resvalou para o tapete,
não antes de formular outra pergunta:
- Que faço aqui?
Acordei alguns minutos depois,
ou talvez mais, a luz exterior era agora menos brilhante, o sol devia
estar escondendo-se por detrás da colina, na lareira as brasas sem a
chama que antes a hipnotizara. Levantou-se, olhou minha roupa e
reparou na mancha da saia. Num flash reviu a imagem anterior, um
homem prostrado, junto a seus pés. Caíra em cima do líquido que
lhe saía do corpo.
- Quem é este homem?
De novo sem resposta, ouvi
barulho no exterior. Acercou-se da janela, num leve toque abriu a
medo o reposteiro, um carro aproximava-se pela vereda de acesso à
casa. Hesitou no que fazer, susteve a respiração e viu apear-se um
casal, jovem, não mais de trinta anos de idade. O carro estacionara
junto à zona relvada que se perdia de vista para ambos os lados.
Tomaram o caminho empedrado. Vinham na direção frontal da casa. Não
os reconheceu. Rapidamente tomou acento no sofá frente à lareira,
deitou-se tendo o cuidado de tapar a mancha de sangue que evidenciava
a sua ligação ao corpo estendido a poucos passos, sentiu ainda o
calor morno do braseiro, o coração saltitando. Fingiu que dormia.
Ouvi a fechadura rodar, “parecem
ser da casa”, os
passos cada vez mais perto.
- Está a dormir! - confirmou
a voz feminina.
- Deixa-a! Depois tratamos
desse assunto! Ajuda-me!
Uma voz dominadora, seca. “Que
faço aqui!”.
Repetia sem som a pergunta de há pouco. Sentiu todas as fibras do
corpo tremendo. Teve medo que se notasse. Descansou ao tomar
consciência que a sua mão pousada sobre a perna não confirmava as
chispas que seu cérebro emitia. Manteve os ouvidos atentos. Sentiu
mexer no corpo, a força realizada para o soerguer, uma pancada seca
como o atirassem para perto, o esforço dos dois, principalmente o
emanado pela mulher, no transporte de algo pesado. “Estão
a levá-lo!”. Um
som mais forte na passagem pela porta, esta abanou provocando um som
seco suficientemente audível para a acordar. Manteve-me adormecida.
Ouvi,
no entanto, a paragem que ambos fizeram, aguardando qualquer reação
sua. Não se mexeu. Retomaram o andamento pesado e até ouviu seus
passos no exterior, depois do bater fraco da porta de entrada.
- Saíram! – atreveu-se a
comentar.
Num segundo estava à janela,
espreitando. O corpo era cada vez mais pesado, a mulher quase que
desfalecia a cada passo. No entanto, lá foi fazendo por si.
- Pudera! Um assassinato...
Continuava a não recordar
quem eu era.
- Que faço, agora?
Sua mente reagiu à pergunta.
“Menina! Estás
numa alhada, é bom que comeces a agir e não faças tantas perguntas
idiotas!”
- Ok! Não me lembro de nada
mas tenho que descobrir por mim própria. Não posso aparecer na
polícia sem uma razão plausível para o meu envolvimento e, claro,
com esta mancha que tenho no vestido!
- Porra! Mas quem sou eu?
Primeira decisão: revistar a
casa. Saiu para o corredor, a porta exterior estava fechada. Um
enorme corredor começava naquela grande porta com mais de três
metros de altura, maciça, alguns vidros fumados guardados por ferros
entrelaçados, tinta descascando-se. Reparou em mais portas, todas de
igual dimensão, ao longo do espaço que seus olhos albergavam.
Terminava num armário cheio de livros mal arrumados. Abriu duas,
dois quartos, no segundo teve uma surpresa, numa cama de grades uma
mulher parecia dormir. Sua face, serena no sono, emanava sofrimento.
Fechou a porta com suavidade, não queria acordá-la. Seu coração
dizia-lhe que o sono lhe trazia a paz que tudo na sua alma transmitia
desassossego. Em passo acelerado abriu a seguinte, um pequeno
escritório, computador e papéis desarrumados, nada que a elucidasse
sobre quem aqui morava e o seu eventual papel nela. Subiu a escada
para o primeiro andar, paredes de pinturas descolorada. No 1º andar,
deparou com uma porta escancarada, outro quarto, pelo decoração e
mobília antiga, cheio de personalidade, dos donos possivelmente,
duas camas revoltas, das quais uma de criança. O que significava que
haveria mais gente aqui vivendo e a regressar mais momento menos
momento. Um salão enorme à sua frente, livros, brinquedos, mais
livros e mais brinquedos. Quando estava já redopiando sobre si,
ouviu um riso de criança. Curiosa, espreitou. À sua direita, num
canto, um garoto, cinco, seis anos de idade, deitado no chão da
carpete agarrado a uns pequenos brinquedos. Levantou os olhos... e
viu-a. Instantaneamente recuou.
- Mamã!
Ficou estarrecida, decerto
tomava-a por outra. “Eu
não sou mãe de ninguém!” A
medo inclinou a cabeça para a frente de modo a espreitar de novo.
- Mamã! Anda brincar
comigo!
Desta vez, olhava-a nos olhos.
Ela era a mãe dele! Mas não conheceu o seu filho. “Que
faço?” A
primeira reação foi a fuga, mas não podia fugir de uma criança
que lhe chamava mãe. Teve de enfrentar a situação.
- Agora não posso…filho!
Apareceu de corpo inteiro à
sua frente. Não poderia haver duvidas, se não fosse sua mãe ele
reagiria.
- Tu prometeste! – disse
com voz de mimo – antes de ires lá para baixo, há bocado. “Ui!
Sou mesmo a mãe!”.
- Anda, Mãe, senta-te aqui
ao meu lado.
Enquanto falava batia com a
mão no chão da carpete como a indicar-lhe onde se deveria sentar.
- Agora não posso, vamos ter
de sair! - reagi.
- Aonde vamos, Mãe? Comer
fora?
- Não, meu filho! Passear...
- Mas são horas de lanchar!
Tenho fome...
Olhou para o lado
desorientada, nem sabia as horas. Reparou numa mesa de trabalho
próxima, onde um relógio apontava para as 17,30. De facto, o dia
estava acabando, o sol de inverno já se escondera no horizonte, e lá
fora estava cada vez mais escuro. “E
continuo a não me recordar de nada, nem do nome do meu filho”.
- Deixa-te estar! Vou
arranjar lanche para os dois.
Saiu quase correndo, desceu as
escadas apressadamente, quase que se desequilibrava onde os degraus,
na curva, tinham uma largura diminuta. Agarrou-se forte ao corrimão
de madeira que abanou sacudido pela força que imprimiu. Quando
atingiu o rés-do-chão lembrou-se do casal que havia saído com o
macabro embrulho. “Estaria
próximo o seu regresso? Haviam dito que voltavam e tratariam de mim.
Meu Deus! Tenho de livrar o meu filho deste pesadelo”. Cortou
para o corredor contrário à porta de entrada. Ao fundo, um outro
para ambos os lados. Dois degraus separavam o solo que acabara de
pisar. Espreitou à direita e reparou numa porta de vidro que dava
para o jardim. Parecia fechada por dentro o que a sossegou. Virou
para o outro lado e encontrou-se numa cozinha, grande e velha,
carcomida pelos anos, um chão de madeira corrida que já vira
melhores dias, frestas entre tábuas adivinhavam entradas de bichos
vindos das entranhas da casa. “Que
horror! Eu vivo aqui?”.
Dois frigoríficos cheios de pequenas imagens presas com imane na sua
superfície branca chamaram-lhe à atenção. Abriu um deles e
deparou com os ingredientes necessários para confecionar as sandes e
respetivo copo de leite. Olhou à volta e deu com os olhos numa tábua
de pão, do outro lado sobre uma bancada. “Ao
menos têm as coisas necessárias!” Demorou
dois a três
minutos a ter pronto um tabuleiro com as peças de comida. Por
último, apeteceu-lhe uma maça que retirou de uma fruteira colocada
em cima da máquina de lavar louça. Rapidamente atingiu as escadas
que voltou a subir num ápice, o seu
filho mantinha-se
brincando no mesmo local.
- Vamos lanchar! Tens aqui
uma sandes de queijo e um copo de leite com chocolate! Gostas? -
perguntou a medo.
- Sim, Mãe! É o que me dás
sempre a esta hora. Porque perguntas se gosto?
Não respondeu –“parece
que acertei” – e disfarçou
com o puxar das cadeiras. Sentaram-se frente numa pequena mesa
redonda.
- Brincaste muito?
Reparou que a criança era
muito conversadora, o quarto de hora seguinte passou-a contando
peripécias da escola onde andava na primeira classe. Ficou a saber
que se chamava Miguel... Saltou da cadeira quando ouviu a porta da
entrada abrir-se, lá em baixo, alguém entrar e batê-la com
suavidade. “Meu
Deus! Regressaram!” Enquanto
tentava reagir, como se esconder, a si e ao Miguel, ouviu uma voz
rouca chamar:
- Rita! Já cheguei!
Antes de se permitir esboçar
qualquer gesto, o Miguel elucidou-a:
- Mãe! É o Avô!
Percebeu que tenho um Pai.
Momentaneamente aliviou a carga emocional que assentara em si. “A
casa estava ficando povoada de gente conhecida, talvez, os outros não
regressem”. Olhou
o relógio sobre a mesa, eram 18,10 horas. Das várias janelas do
salão já se via a luz difusa dos candeeiros da iluminação
pública. Voltou-se a sentir o rodar da fechadura da entrada. Duas
vozes, indistintas, fizeram-se ouvir, questionando algo. Aguçou os
ouvidos e a frase soou dominadora, seca:
- Onde está a Rita?
A noite penetrara na casa.
Desceu as escadas
silenciosamente. Aquela voz seca, dominadora, vibrava ainda no seu
confuso cérebro. Mantinha a leveza do pensamento sem descortinar o
seu passado, a não ser Rita de nome com um filho Miguel, já sem
dúvidas sobre o facto de viver nesta casa onde acabara de ter
algumas horas terríveis, sem explicação. Sabia ter um Pai que
estava algures já na casa e mais duas pessoas, as tais que levaram
aos ombros o cadáver do homem que há pouco se encontrava estendido
na sala, que aparentemente também poderiam estar no rés-do-chão
para onde se dirigia. Espreita o corredor para ambos lados, nada à
vista, a não ser mais casacos grossos pendurados no antigo vestiário
que ombreia a porta de entrada. A ansiedade é tal que passa as mãos
pela cara e cabeça, como que ordenando os pensamentos fugidios, dá
os passos necessários mirando a passadeira de tom vermelho sangue
que pisa, entra no escritório onde pensa encontrar seu Pai. Ninguém.
A lareira e o calor das suas achas voltam a atrair sua atenção,
chega-se até junto dela, olha o canto onde antes estava caído o
homem em que tropeçara, perante a memória do acontecido, o trauma
que subsistiu, a mancha que se vislumbrava ainda no local, seu corpo
volta a não aguentar a súbita tontura e cai pesadamente sobre o
sofá, desfalecida. É acordada por, seu Pai, depois de tempo
indeterminado.
- Filha! Horas de jantar! -
disse meigo, com uma festa pelo cabelo.
Abriu os olhos e encarou-me,
admirada.
- O quê, Pai?
- Estavas dormindo... Vamos
jantar?
Levantou-se e contemplou a
chama vinda da lareira, examinou a minha cara, como que a entender o
que estava acontecendo. Subitamente, seus olhos rodam para a direita
e observa admirada o chão da sala.
A mancha não estava lá.
- Que aconteceu?
- Nada, julgo eu! Estavas
dormindo...
- Mas...
Sua mente raciocinava a todo o
vapor. “Algo está
errado”.
Continuava fixamente olhando o suposto local que deveria apresentar a
mancha de sangue. Incrédula, porque permanecia o facto da sua não
visibilidade, lançou o olhar por toda a sala. É nesse momento que a
porta de abre e entram André e Maria José.
- Olá, Mana! Já acordaste?
Estavas há pouco dormindo profundamente – diz André na sua voz
pausada e firme.
- Eu? Tens a certeza?
- Claro! Tanto eu como a Mizé
temos espreitado a sala durante a tarde e tu sempre ferrada!
- A sério? Foi tudo um
sonho?
- O quê? Agora sou eu a não
entender!
Demorou uns segundos a
responder, as peças estavam encaixando. A sua memória voltara.
Aliás, pelos vistos, nem sequer desaparecera, tudo parece não
passar de um sonho mau.
É assim a família, Pai, Mãe
e seis filhos. A minha mulher, a sua muito querida mulher, está lá
dentro numa cama, entrevada e absorta do mundo que a rodeia. Mas
existe outra que se mantém na história do meu passado e que está
sempre presente, se bem que invisível.
Todos vivem em Lisboa, com
exceção de dois, que estão comigo. Alimentam-me a alma, todos os
dias. Os outros vieram curtir a amizade, como diz a geração jovem,
passar o fim-de-semana na província numa aldeia abandonada pelo
tempo, na casa-paterna, refúgio dos pais após o início da doença
da Mãe.
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