A carta que não escrevi!
Casei,
em primeiras núpcias, aos vinte e três anos, com
quem
nunca senti magia.
Sabem
que a magia é precisa?
O
que é mágico transcende-nos.
Faz
acreditar que há qualquer coisa para além do que vemos. E, de
repente, estamos interessados em perceber como chegar lá, ao acto da
magia.
A
minha relação com o namoro, correu num contexto em que tudo era
natural.
Mas
o amor tem muito mais,
espontaneidade
na relação,
amizade,
companheirismo,
dedicação
mutua,
sofrimento,
dádiva,
envolvimento
intimo que não se explica, existe,
sofreguidão,
porque
o outro nos apetece,
porque
estamos carentes,
porque
nos entende sem precisar de palavras,
porque
somos um, apesar de, individualmente, dois.
Nunca
vi isto na relação com aquela que foi minha mulher, durante uma
dezena de anos.
Recordo
que o namoro começou aos 18 anos,
que
as festas de grupo iam amparando a relação,
que
os pais, cedo, abraçaram um casamento certo e, portanto,
enquadraram-me
nas suas vidas diárias.
E
deixei-me “enquadrar”.
Essa é a verdade!
Seriamente...
enquadrei-me.
A
palavra está exacta.
Não
se esqueçam que estávamos em 1960.
Até
me sentia importante.
Com
dezoito anos, vá lá, com vinte. Os dois primeiros anos foram um
tanto escondidos da família dela.
Mas
no dia em que mais não pude fugir e, também, ou ia ás festas da
família e dos amigos, onde estavam as mães, ou então, nunca
conseguia estar com a namorada...
Bom!
A consequência foi deixar de pensar muito.
Não
me lembro de questionar a minha posição no seio daquela família,
agradável
de trato,
simpática
para comigo,
atenciosa
nos pormenores do dia a dia,
convidando
para jantar fora,
estar
presente em sua casa quando recebiam visitas de familiares.
De
facto, não me lembro de questionar nada.
Logo,
teria de dar em casamento.
Foi
o que aconteceu...
e
aceitei.
A
chama não era nenhuma.
Gostei
do sexo, da envolvência dos corpos.
Claro
que gostava.
Mas,
também, nunca tinha tido outras
experiências, excepto o que chamo de ensaios de juventude, que
permitisse a comparação.
A
tal história, sexo versus amor.
O
que quero dizer é que só aprendi a distinguir muito mais tarde.
Hoje,
depois da correria dos anos, gosto de pensar que foi o acaso que
colocou à minha frente, na pista de baile, uma moça simpática, com
um olhar carente que me comoveu.
Simpatia
que durante anos calou o meu discernimento, carência que fez crescer
em mim um sentimento paterno que, durante anos demais, abafou minha
intuição.
Sim,
porque nunca ultrapassaste a fase de moça simpática.
Desculpa,
mas depois de tantos anos, o que me ficou de ti foi só a afabilidade
inicial, seguida de uma permanente alegação que tudo custava muito
a realizar, que o supra-sumo era o repouso do corpo.
Deixaste
que tomassem conta de ti.
Pior,
eu decidi conduzir-te na vida,
esquecendo-me
que desejava uma companheira com quem dividisse as tarefas, as
preocupações, os designios.
Esqueceste
o dar e eu olvidei o receber.
Lembro-me
o primeiro momento.
“Está
ali uma moça que deseja dançar contigo”.
Lembraste
do Casino onde, vezes sem fim, rodopiámos sobre o sobrado lustroso,
as valsas e os tangos de então?
Dançámos
e depois da dança disseram-me que “não era essa”.
Não
liguei,
já
estava tomado pelos teus olhos carentes.
Ainda
hoje não sei quem era a “outra”.
...Como
a vida tem os seus caminhos...
Seriam
diferentes se devolvesse: “ então, quem é?”
….
O casamento.
Depois
de sete anos... sete anos(!!!???) casámos. Fomos à Igreja, tivemos
padrinhos, deslizamos sob espadas em arco, um vestido de noiva
lindo... um banquete no jardim...
Tenho
uma boa recordação desse dia! E não deveria ter?
E
tu? Qual a impressão com que ficaste?
Não
sei... nunca falámos nisso!
É
disso que te acuso, hoje, daqui, sentado neste papel, escrevendo ao
sabor dos pensamentos!
Nunca
discutimos nada... eu deixei, tu deixaste.
Amorfos?
Não! Desinteressados!
Eu
não queria, sempre quis ser interessado!
Mas
nunca te disponibilizaste, a tua superficialidade foi-se avolumando
com o tempo.
Dirás
que foi a nossa juventude!
Talvez,
admito que vivi para dentro, cresci com os problemas avolumados no
peito.
Por
isso, um dia, estoirei...
Sim!
Sim, podes acusar-me de, então, me preocupar pouco com o que se
passava à minha volta!
Tinha
olhos para os filhos, o resto pouco me interessava.
Mas
a tua indiferença manteve-se...
Não!
Não me quero queixar! A vivência desfrutada ao longo do nosso tempo
teve momentos agradáveis, que não se esquecem:
Os
nossos passeios na Serra do Buçaco, o sentimento dos corpos, a busca
dos pormenores.
Lembraste
da viagem que fizemos nos dias a seguir à Revolução de Abril?
Deixando
para trás a euforia que não chegara ainda à província, mantendo,
no entanto, o gozo de vivermos em tempos de revolução, mesmo que
vista à distância?
Lembraste
da nossa euforia com que vimos uma cassete do dia 25 de Abril, no
Centro Pompidou em Paris?
Espera,
da nossa, não! Da minha...
Tu
querias mudar de tema...
Pois...
foi uma das nossas mais pesadas divergências: a mudança era sempre
pesada, acabares o curso foi muito difícil! Portanto, não o
acabaste! Era preferível o quente da cama do que estar a tempo nas
aulas em Coimbra. Lembras?
Foi,
então, que tropecei na minha maior desilusão! Ou será que
esqueceste a nossa promessa de matrimónio?
Eu
era técnico de electricidade, tu serias de civil.
De
facto, nesses primeiros tempos, queríamos trabalhar juntos para que
nunca tivéssemos de nos separar.
Tão
bonito... tão irreal...
Mas,
o importante, é que não cumpriste a tua parte. Por comodismo!
Como
a vida deixasse actos desses impunes...
Por
isso, mudei de vida profissional, deixei de esperar.
Lembras
a razão porque optei trabalhar em Coimbra, longe de ti?
Estou
mesmo a ver a tua cara estupefacta pela pergunta... mas é isso que
agora estás percebendo, afastei-me de ti... foi o primeiro passo
para o completo desentendimento.
E
os tempos eram propícios a novas aventuras. Vivia-se o “25 de
Abril”, na rua, no trabalho, em casa. Tudo prometia mudança, foi
uma dinâmica imparável!
Lancei-me
na ajuda às empresas, aos projectos nascentes.
Foi
a invejável idade de inocência politica.
Essa
euforia que se viveu foi uma experiência de vida que deixou marcas
profundas, nos conceitos, nos comportamentos, nas mentalidades.
Foi
um tempo de afirmação de liberdade e de emancipação.
Foi
quase uma revolução na consciência dos portugueses.
Tudo
se punha em causa, não se consideravam quaisquer valores éticos,
todos os meios eram admissíveis atendendo aos fins propostos, uma
liberdade onde tudo era permitido.
Até
o esquecer que ela tem um travão que se atinge quando a liberdade
dos outros é posta em causa.
Estou
a divagar...
… Os
filhos!
Aqui
desejo ser duro. Até hoje, nunca te quis atirar as minhas convicções
profundas. Recordas, porventura, que só consegui ter um filho quando
aceitei a vinda de um cão para nossa casa?
Posso
dizer que troquei um filho por um cão!
Que
aceitei os vandalismos de um animal, um lobo, num 8º andar, para
poder fazer festas, pegar ao colo, ver crescer um ser lindo como a
nossa filha primeira!
Meu
Deus! Quando nos momentos íntimos comigo próprio vividos, os urros
que lançava...
A
monstruosidade a que me obrigaste...
Desculpa,
depois de tantos anos, as palavras saem mais fortes.
… Estou
fazendo um esforço de memória para encontrar um momento sequer em
que verificasse em ti um acto altruísta, algo que, mesmo ao de leve,
tivesse ficado pendurado ao longo dos anos à porta da memória.
… Mas
não! Não consigo.
Com
os pensamentos voláteis, como estão agora e sempre que os alinho
neste papel amarfanhado, recordo a última farpa que me lançaste:
Um
filho para salvar o casamento e, depois, vendo que não surtiu
efeito, lançaste-o numa cama e desististe dele.
Admito
que, nessa altura, precisavas mesmo de salvar o casamento. Ele estava
ferido de morte, tu não querias saber e, pelo menos, nunca
perscrutei qualquer acto nesse sentido...
O
filho foi um acto tresloucado.
Primeiro,
porque sabias que mais um parto poderia ocasionar sérios problemas
sanguíneos para ti e para a criança, depois porque não é assim
que se salva algo que já está morto.
Mas,
deixa-me dizer, antes que esqueça:
Este
filho foi uma bênção! Para mim, para a mulher que depois de ti me
amou e me deu a sua vida – e olha que é verdade, tu sabes –
deu-me, efectivamente, a sua vida!!!
Hoje,
com esta carta, quero perdoar-te!
Estejas
onde estiveres, tens o meu perdão! Porque, esse ultimo acto
tresloucado,
me
fez encontrar o amor,
a
compreensão,
a
dádiva,
a
espontaneidade,
a
amizade,
o
companheirismo,
a
dedicação,
o
sofrimento partilhado,
o
envolvimento supremo,
Tudo
o que sempre tentei ver em ti...
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