O Freixo da minha infância


A minha infância habituou meus ouvidos
aos ruídos silenciosos,
como uma paragem de autocarro onde,
além da brisa amena, só o vazio acontece.
A paz bucólica da natureza sempre
invadiu os meus corredores da memória.
Talvez,
porque junto a minha casa existe um freixo altaneiro, cansado pelos anos,
mas ainda erecto em sua majestade envergonhada, que dá o nome à casa-paterna.
Sempre fez um ruído de murmúrio de flauta,
feito de quietude,
lembrando tardes de sol quando a família se abrigava
à sua sombra acolhedora.

Hoje, velho como todos os seres que giram à sua volta,
coberto de eras, secas pelo tempo,
lembra a paragem de autocarro
onde já ninguém se apeia.
Aliás, como eu próprio,
que daqui sai há muitos anos procurando
na grande cidade a ilusão de uma vida diferente,
voltei para descansar meus ossos sobre a sua sombra acolhedora que, outrora, relembrava.
Sinto, como nunca, o seu grito de uma vida renovada, sem eras dilacerantes,
no desejo de fugir à condenação do jugo da natureza,
agitando seus ramos cansados,
pedindo que o cuidem
e o devolvam à majestade de outrora.
Como desejasse voltar a ser o fim da linha,
depois de muitas estações de passagem da vida
querendo, de novo,
abrigar-me em sua sombra.
Talvez, tentando deter o inelutável tempo.

É como a minha aldeia, outrora cheia de juventude,
onde sempre saltitava uma bola de trapos
na calçada suja de pó,
plena de gritos infantis,
cujas vozes hoje são imagens vivas em minha mente entristecida
mas, ainda, acutilante de anseios.

A pobre realidade do mundo foi transformando
a minha aldeia.
Foram as fugas para espaços ilusórios da sorte,
onde dinheiro reluz na obscuridade de vidas sem gosto,
com a utopia espreitando a cada esquina.
Foram as casas velhas caindo
e substituídas por outras sem sentido,
que não se enquadram na vivência de gente simples.

Apesar da luz, das aves que ainda cantam,
aqui e ali um breve acesso de amantes,
não quero rever-me no passar dos anos,
com a fecundidade do corpo a esvair-se
no apodrecer dos sentidos.

Mas, hoje, vivo aqui e quero, ainda,
ser dono do meu querer.
Desejo um freixo rejuvenescido.
E, num qualquer dia da minha existência,
antes de perder a consciência,
esse espírito vagabundo,
antes que a neblina se dissipe no fundo do meu jardim,
saberei serpentear meus canteiros e,
com o cheiro da terra em minhas mãos,
metê-las-ei à obra de tornar viva
a sempre actual quadra que emoldura
a porta desta casa-paterna:

O freixo que vês da rua
Só dá sombra ao Bom Amigo
Bate à porta, a casa é tua
E que Deus seja contigo.”

Comentários

Postagens mais visitadas