A morte espreitou a noite


Deixo-vos um "cheirinho" do meu último Romance - A Morte espreitou a Noite



Luís é uma figura achaparrada, baixo e grosso. Dado a poucas conversas, “bom dia” ou “boa tarde” era o muito que se podia almejar de uma alma simples, introvertida, concentrada no caminho que trilha, temendo pelos seus pés escondidos nas botas de numero acima ao justo tamanho, tal a sua desproporção do tronco com a pequenez das pernas que arrasta na calçada.
Seguem-no dois jovens moços de enxada ao ombro, tais discípulos gravitando ao redor do mestre, num aparente servilismo que me fez concentrar mais a atenção neste quadro camiliano.
Os olhos vivaços de Luís, que não se deixavam enganar – a subserviência era exigida – mediam sem piedade os desgraçados servos, numa repreensão de um qualquer trabalho mal feito com a consequente desgraça de um salário perdido no mau enjeitamento das vinhas lá em baixo, naqueles leitos rasos de terras aráveis que circundam a aldeia.
Luís tem setenta anos, bem medidos na minha lembrança de outros tempos, capataz de tempera rija de meus tios nesse passado algo longínquo e de memórias gulosas de desfolhadas feitas na eira do solar onde na roda das raparigas se buscava o beijo do prémio do milho rei encontrado.
Continuei olhando, por detrás da obscuridade dos arbustos de meu jardim.
Estava na rega de fim de tarde, numa devoção constante a um espaço que me recorda a vivência feliz de menino onde outrora corria atrás dos brinquedos, memorizando no tempo o local de repouso de meu pai lendo o jornal, depois de um dia cansativo de trabalho na Câmara Municipal. Ele que fora filho de dono de grandes roças em África, cuja riqueza se medira às toneladas de café saído das mãos calejadas dos negros. Nunca soube se muitos dos mal-tratos infringidos pelas gentes brancas das lides coloniais, que deram origem à tensão racial da década de sessenta e a uma esgotante guerra com um fim anunciado de derrota dos brancos, já que se tratou de uma luta fora de tempo e contra as forças da História, partiram também das tais roças de meu avô, que nunca conheci mas do qual conheço históricas imensas.
Tal como de meu Pai, da sua épica luta contra o envelhecimento imposto pela regra de então, “aos setenta a aposentação”, ele um homem de activo pensamento na labuta diária com os papeis da burocracia, pouco dado ao sedentarismo da sua arrumada secretária municipal, sempre calcorreando a longa sala repleta de zelosos funcionários, tirando dúvidas ou solicitando decisões. Num dia, numa manhã cinzenta e húmida de Novembro em que um papel timbrado dos serviços centrais lhe dissera “a partir de amanhã deve ficar em casa”, recordo tê-lo visitado e minha mãe, logo à entrada da porta, exclamara:
- Teu Pai, no primeiro dia em que poderia descansar, levantou-se às sete da manhã, comeu as torradas do costume, engoliu o copo de leite, procurou na gaveta a tesoura da poda e saiu porta fora.
- Para onde, minha Mãe? - perguntei tão cheio de admiração pelo insólito acontecimento como de alivio – eu que lhe propusera uma sala de aula cheia de alunos atentos aos seus conhecimentos práticos de economia e me respondera:
- Não! Vou livrar-me das fadigas diárias, o meu jornal e a esplanada do café esperam-me.
Eu que temera que o desejado descanso fosse um caminho rápido para a sepultura, fui encontrá-lo no meio da vinha da quinta onde a casa senhorial se erguia, tratando das cepas, escolhendo o local de corte apropriado para que vingassem cachos sãos e sumarentos no próximo Estio.
Foi o primeiro de muitos dias em que se levantou ao raiar da manhã e seguiu silencioso pela rua da aldeia ao encontro das muitas mini-vinhas de que era dono.
Estávamos em 1977.
Muitas vezes discutiu comigo a Revolução de Abril e as suas consequências económicas para o País, às quais todos nos havíamos de adaptar, e ele, perante a mudança na mentalidade operária, decidira trabalhar a terra porque era dele e tinha saúde para tal.
Talvez por isso, morreu aos noventa e um, pacatamente, quando passeava seu corpo já cansado junto ao edifício onde trabalhou abnegadamente durante 40 anos. Acabara aí uma vida cheia de aventuras...
Vi, ainda, Luís cruzar a portada da cozinha de sua casa e os dois brasileiros seus lacaios escapulirem-se apressadamente nos fundos do estreito caminho que os levaria aos quartos onde, decerto, deitaram seus corpos cansados, pois meus ouvidos não escutaram os seus costumados e estridente sambas.
O silencio mantinha-se na aldeia e eu continuei a enviar chuva sobre os canteiros e os muitos vasos que os serpenteiam.
Este jardim, do qual hoje sou dono, sempre foi classificado por meu pai com o um pátio de “artes verdes” pois o facto de estar virado a norte, sistematicamente, quaisquer flores plantadas na terra morriam com o agreste inverno. Até um dia em que percebi residir a solução na semeadura em vasos. Foi um sucesso e, enfim, tenho um jardim onde as flores resplandecem por todo o lado.
- Boa tarde!
A passagem de um outro vizinho retirou-me dos meus pensamentos.
- Boa tarde! - respondi com um aceno de mão, enquanto o jacto do água se inclinava perigosamente na direcção da rua e quase atingia o Sr. Afonso que, destemidamente, se aproximara do gradeamento.
- O Menino já sabe da última?
- Qual, Sr. Afonso?
- Está afixado lá em cima junto à Capela um edital da Junta convocando o povo para uma reunião na próxima segunda-feira.
A frase fora dita quase em sussurro.
- Mas passa-se alguma coisa?
- Não sei, mas ouvi dizer que estará em causa a entrega das instalações da antiga escola a uma comissão de utentes da nossa aldeia. Veja lá, como houvesse aqui alguém capaz de se entender com os outros. Ora...
Sem esperar qualquer reacção da minha parte, o Sr. Afonso seguiu caminho abaixo dirigindo-se ao seu velho carro, sempre arrumado na curva do caminho da fonte.
Este homem!” - comentei para os meu botões, seguindo-o com os olhos o seu andar trôpego. Vi-o abrir a porta do carro, entrar e ajeitar-se ao volante. Como de costume, ficou mirando o vácuo, perdido na contemplação da rua, como se esperasse a chegada de alguém. Se olhasse melhor, ver-se-iam lágrimas sulcando sua cara envelhecida. Mais uma vez escolhia aquele canto para, sozinho, deixar brotar a sua sensibilidade de amantíssimo marido recém viúvo.
Enquanto olhava a nuvem saída do bocal da mangueira, aspergindo a pouca e maltratada relva existente, medindo a quantidade de água pelo tamanho das poças que surgiam nos intervalos da relva, voltei os pensamentos para o tempo em que era tratado por “menino”, um termo que considero um valor supremo de consideração pelos filhos do homem que durante décadas fora o único empregador da terra e em cuja casa serviram como criadas a maioria das moças da aldeia. Nós, os filhos, éramos os “meninos”... Hoje, os mais velhos, como o Sr. Afonso, ainda me tratam assim. Meus olhos humedeceram, o encanto do passado cria sempre em mim uma terna nostalgia.
Acordei de novo para o mundo que me rodeava, com a algazarra de dois miúdos que desciam a rua com uma bola de futebol nos pés. As gargalhadas e as recordações eram contagiantes. A água vertida já clamava pela inundação, tal fora a quantidade que enviara na direcção da relva. As hortênsias precisavam, ainda, de um pouco mais de humidade e para aí me virei, enquanto os sons me enchiam a infância.
Sei que fui uma criança traquina. As travessuras acompanharam-me durante muito tempo e os castigos nasciam com frequência.
Como qualquer criança de aldeia fugia para a rua onde outras brincavam com suas bolas de trapos, de corrida em corrida, em pontapés falhados, com saudades que a memória rói, ia passando meus dias, meu hoje velho irmão, quando de férias vindo da cidade, saltava comigo a janela da salinha, atrás das inconstâncias da juventude, afoitos no acto, mesmo quando o vento frio nos puxava os cabelos, a cúpula celeste abençoava nossos passos, e lá íamos, um atrás do outro, buscando a brincadeira desejada.
Não esqueço – e isso terá tido alguma influencia na minha meninice – que fui vestido de menina durante os dois primeiros anos de vida. Mais tarde percebi que minha mãe desejava uma rapariga como objectivo da sua segunda gravidez e a cor de rosa, a franja sobre a testa e talvez a minha cara bonita – diziam todas as moças da aldeia “parece mesmo uma menina” - martirizaram a minha infância.
Talvez por isso a rebeldia, a teimosia em brincadeiras ousadas, resistência a fazer o certo em detrimento do errado.
Lembro o dia de sentar a mesa onde a caneta sobre o papel me gastou os dedos, abrindo horizontes desconhecidos, passei a ler o que outros escreveram na ânsia de um dia, talvez, alguém olhar meus actuais escritos, ferrados no papel que, por desgastado, agora, mais meu amigo passou a ser.
Lembro a Mãe, com ela, havia sempre um brilho no vazio, a solidão era menos companhia, iluminava a estrada da existência, era o atalho da procura do sentido da vida. Tenho saudades, ó deuses, desse tempo que tudo escondia, onde era fugaz a obsessão dos pescadores de ostras.
Vejo a Mestra, com os cinco olhos na mão, uma cara que não escondia ser mãe e chorava a reguada que chovia como laminas decepando o brilho dos nossos olhos. Com essa maldição evaporada, entrei com distinção e aprumo num colégio da região, aí levei um rumo contrário à, ainda, minha curta existência, com voz de tons dissonantes, fui olhando o sexo ao lado, inebriei-me na procura do milho-rei na intenção de beijar as moças que sorriam. Quis ser adulto decapitado de anos.
As imagens distorceram o caminho e fui atirado, num dia de chuva, para uma valeta interna na grande capital do império.
Lembro a figura do Pai, austero e pedagogo, mas agonizante do seu passado, fechando meus horizontes, expondo-me à solidão de uma camarata com muitos outros iguais.
Aprendi, só então, as sábias virtudes dos homens.
Soube ler os livros no sentido correcto, esquerda para a direita, cima para baixo. E, sempre que via o fim escrito na página última, de mão cansada em portar tanta sabedoria, logo escolhia novo cavalo para montar. E a trote e, por vezes, a galope, buscava o ensinamento dos escritos balouçados nas linhas lavradas.
Fiquei a gostar da cidade. Fui fã da adolescência sensata dos jovens de sessenta. E porque já gostava da mão jovem, fui agonizando minhas ânsias no namoro leve, sentimentos partidos pela distancia nas férias continuadas na minha aldeia, saltando para a rua da janela da salinha, correndo aos pássaros sem ouvir seus cantares.
Eis que um dia, senti meu corpo fechar, com terror, a despreocupação e senti-me a saltar fogueiras responsáveis...
A relação com minha mãe foi sempre ambígua. Houve sempre uma areia que magoava, mesmo sem aquilatar a causa. Hoje, despido do tempo e da sua presença, infelizmente, relaciono a bivalência do trato, a percepção de que meu irmão mais velho fora tudo o que a encantara, eu, apenas os sobejos da sorte. A sua constante frase “este meu filho é bonzinho, está sempre pronto a ajudar os irmãos”, tinha um sentido perverso que me tolhia a decisão consciente e, abnegadamente, lá ia fazendo o que se me pedia com uma qualquer rabugice entre dentes que, claro, nunca deixava transparecer.
E todo esse passado, decerto, esteve presente na intolerância que exacerbei em acontecimentos muito posteriores no tempo, mas que definiram o meu desejo de afirmação, não aceitando sentenças preconcebidas pelos costumes.
No dia do seu funeral, um pouco por todas as causas e traumas, chorei a perda sem consentir a dádiva do perdão.
Talvez, por tudo isto, a minha actual determinação pela escrita, fazendo a catarse exigida a quem pertence à linha de homens que se desejam purificar.

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