UM CONTO - Carmo


Carmo correspondia ao tipo de mulher dócil que sempre fez o que se lhe pedia. “Devias ir para a Suíça tirar um curso de terapeuta! Lá existem os melhores professores e as melhores escolas de educação e terás uma ferramenta para utilizar” - disse-lhe um dia seu pai.
E ela foi. Sem questionar ou confirmar as verdades do seu progenitor.
É certo que a Suíça é deveras um pedaço de terra abençoada no meio de uma Europa perdida pela voragem da economia, talvez o único local do hemisfério ocidental onde a arrumação da sua própria beleza é consensual. Por isso, até valia a viagem...
Mas deportou-se inconscientemente e por lá ficou dois anos que não lhe acrescentaram nada, a não ser um curso no seu currículo que nunca admitiu exercer.
Como todos os seres humanos, depois de nascerem, criou-se à sombra materna, acolheu o peito vigoroso de sua mãe como esmola gratuita, roubou o sossego de muitas noites mal dormidas a seus pais e irmão mais velho, mais tarde, exercitou todas as formas de exuberância de vida própria da juventude com dinheiro.
No dia em que fez vinte e um anos saiu de casa e atirou-se de cabeça a um casamento errado. Escolheu o ser mais fútil que se poderia encontrar nos bares da noite lisboeta. A frivolidade era tamanha, a profundidade e escuridão da sua alma inequívoca, um comportamento de marialva barato e ocioso.
Depressa se cansou e, magoada, saiu da relação com uma filha nos braços.
Demorou dois anos mais a descobrir a sua própria futilidade nascida naquela relação e a dureza de uma realidade exigente preconizada pelos abraços de sua filha chorando por uma vida condigna.
Aos vinte e cinco anos sentou-se num degrau de uma escada carcomida de um velho prédio de Lisboa, onde morava e, pela primeira vez, interrogou-se: “O que faço aqui”?

Manhã cedo, abriu as portadas de madeira do velho apartamento de duas assoalhadas da Travessa das Rosas no Bairro Alto, olhou a rua no momento em que os cantoneiros da Câmara se atarefavam a limpar os efeitos de uma noite de copos e, contrafeita, dispara para os seus botões:
Estes filhos da mãe desta juventude, transviada pelos copos de cerveja, ainda perceberá, um dia, a falta de higiene que representa a porcaria que aqui deixam todos os dias. Como consigo eu viver num local em que só pelas quatro da manhã posso repousar? Ontem era um deles, dava tudo por um shot revigorante, uma boa cavaqueira de futilidades, uma queca ao cair da madrugada... Hoje, quero reaprender a viver, a recolocar-me nos eixos da vida”.
Cansada da noite anterior, da vigília permanente ao sono de sua filha de três anos que repousa no quarto ao lado do seu, Carmo sente chegar o momento de intimidade, só seu, onde liberta todas as tensões, as suas incapacidades, até mesmo as suas incongruências. Com essa falsa liberdade no pensamento abre o chuveiro, despe a camisa de dormir e deixa correr a água quente livremente sobre os seus cabelos revoltos saídos da noite mal dormida, ensaboa-se repetidamente como desejando retirar da pele os podres da vida que estava decidida a deixar para trás, esvaindo-os directamente do seu corpo nu para o ralo da banheira. Encosta-se aos azulejos frios, sente o contraste da temperatura, deixa-se envolver na agradável torrente. Fecha os olhos e, momentaneamente, desperta os seus sentidos para a aridez do caminho que pretende trilhar:
Que vai ser de mim? Irei ser capaz de reagir em conformidade com a minha actual tomada de consciência ou vai ser mais uma caminhada, semelhante a outras, na direcção do inferno da puta da minha vida?!
Desperta do momentâneo torpor, fecha a água e envolve-se no lençol branco que retira do cabide junto. Esfrega-se com veemência e sente a carícia das mãos passando pelos seus firmes e bonitos seios. Levanta os olhos para o espelho no outro lado da pequena casa de banho e aprecia a vista que este reflecte:
Ontem foram bem apalpadas! Foi uma boa despedida desta fútil vida”. Mantendo os olhos em si, passa as duas mãos ao de leve pela sua barriga:
Ainda vou tendo corpo para conquistar um homem”.
Volta a despertar desta divagação e é a vez de limpar o cabelo. Mantém por momentos os dois braços levantados e, sem o desejar, volta a fixar o seu corpo no espelho:
“Como sou bonita!
- Mamã, mamã!
O grito caiu nos seus ouvidos húmidos como um chamamento à realidade. Era o fim do momento de evasão, sua filha acordara e o chamamento era imperioso.
- Já vou, meu amor! A mamã está acabando de tomar banho!
Rapidamente, envolve-se no lençol, prende-o sobre o peito, calça os chinelos de quarto e corre ao encontro daqueles três pequenos e franzinos anos, anjo de olhos vivos e famintos de atenção.
- Meu amor! Já aqui estou. Dormiu bem?
- Shim...
Faz uma cara de amuada repreendendo-a assim por a deixar sozinha com os seus sonhos, e deposita sua cabeça no ombro da mãe que entretanto, lhe pagara ao colo.
- Tomar o pequeno almoço, vestir e vamos sair! A mamã vai procurar um trabalho e precisa da tua opinião.
Estreita-a nos seus braços nus, ainda húmidos do banho donde saíra. Já a caminho da pequena cozinha que ladeia o quarto, uns quatro metros de área onde passa muito do seu tempo, cozinhando para as duas ou, em outros momentos, se atarefa na preparação de uns “bocadillos” com que presenteia seus amigos de farra, noite após noite, já altas horas da madrugada, onde o sono não espreita e a vida de desvario acontece, apanha no ar as palavras de sua filha:
- Mamã, não me deixas em casa sozinha, pois não? Tenho medo!
- Não minha querida filha! A partir de hoje vai ser tudo diferente!
Maria do Carmo levanta a filha no alto dos seus braços, olha-a de frente, como a fazer esquecer os frequentes abandonos pelos amigos, pela bebida ou para irreflectidos momentos de sexo, sempre no desejo de olvidar as amarguras naqueles pequeníssimos momentos de êxtase.
Já na rua, levando a filha ao colo, saltita entre as centenas de copos de plástico espalhados na rua, outras tantas garrafas e papéis, detritos deixados pela imensa multidão que na véspera e em todas as vésperas de cada dia, pululam impacientes até perto das quatro da manhã, bebendo cerveja, como essa noite fosse a última, num ritmo alucinante, esvaziando as frustrações de suas vidas. Chegam em grupo, recreando a noite que pretendem longa, abandonam o local silenciosamente, de mãos encostadas à parede, mareando sobre as nuvens de vapor de álcool que lhes corre nas veias, supostamente satisfeitos por passado mais um dia das suas exaltadas vidas.
Os funcionários camarários atarefavam-se, agora mais abaixo, aspirando os dejectos com barulhentas máquinas de sucção, deixando aos poucos a rua limpa e pronta para a noite seguinte.
Já longe da azáfama de limpeza, Carmo continua pensativa, talvez sentindo o peso da decisão tomada naquela manhã. Cara fechada, olhos postos no chão observando as pedras da calçada, não fosse seus saltos altos caírem num qualquer pequeno buraco do estreito passeio e esfacelasse o couro preto das sandálias que lhe custaram os olhos da cara. Elegante, meneando a anca, vai rua abaixo na direcção da praça do poeta Camões, aquele que cantou a gesta das nossas gentes, curtiu os prazeres da vida vadia, desfiou pelo fio da espada a sua constante inquietação, viveu a amargura e a desilusão, criou um modo de vida na inspiração jocosa, erótica, numa arte de bem seduzir mas, sobretudo, na eloquência. Junto à estátua quatro rapazes, com idades rondando os trinta, estão sentados em cavaqueira animada, provavelmente, em continuação da noite. Por momentos, a graciosidade da mulher que passa assume importância e levantam os olhos parando a conversa. Homens feitos, ociosos, desperdiçando suas vidas, certamente, satisfeitos pela vivência experimentada na noite. Este o retrato de grande parte da nossa juventude, ociosa porque a crise, sempre a crise que vai justificando o seu ócio, é “global e não dá trabalho a todos”, como que o passar dos anos seja culpa dos outros, de gente sempre sem rosto, culpando-os pelos seus desvarios e infortúnios, quando os seus actos e consequências são, efectivamente, só de sua responsabilidade.
Já longe do Chiado, uma das peças arquitectónicas mais belas da cidade de Lisboa, no entanto, com algumas nódoas urbanísticas que desesperam os teóricos do sector, sempre prontos a culpabilizarem a estratégia utilizada pelo inquilino dos Paços do Concelho da Capital, quer seja por mera retórica política ou, muitas vezes, validada pelo bom senso e regras construtivas, Maria do Carmo já um pouco cansada pelo peso dos três anos de sua filha poisa-a no chão, toma-lhe a mão e inicia o monólogo que está encravado na sua garganta:
- Sabes que a Mamã está decidida a mudar de vida? Quero ter mais tempo para ti, brincar contigo em casa, no jardim, ver-te e ajudar-te a crescer?
Clara talvez ouvisse o que se lhe dizia pois levantou os olhos como que sondasse a cara da Mãe, porventura com cepticismo óbvio, determinado pelas muitas goradas experiências anteriores.
- E, possivelmente, vamos sair de Lisboa – continua Carmo – preciso de arranjar um emprego que me permita estar contigo e oferecer-te a mãe que precisas. Não é que goste muito da ideia pois sou uma mulher de cidade, a província não tem divertimentos, adrenalina...
Carmo cala-se de repente. Olha Clara perscrutando o efeito das palavras saídas sem jeito. Agarra-a por debaixo dos seus ombros e puxando-a de novo para o seu colo, aproveita para perscrutar os límpidos olhos de sua filha:
“São lindos os olhos desta miúda, saem a mim, claro! E nada percebeu das minhas palavras, felizmente. É melhor acabar com estas explicações, ainda digo mais alguma coisa que não deva.”
E continua o seu caminho, cruzando as muitas pessoas que sobem e descem o Chiado, sem notar o ócio de muitas ou a pressa de outras com destino certo. É o pulsar da cidade velha, erguida jovem com suas lojas desertas, pois a vida não está para euforias, a crise instalou-se no País, na Europa, no Mundo. As pessoas vivem acima das suas capacidades, as futilidades adquiriram sinais preocupantes, entraram no quotidiano de muita gente, erguendo muros de descontentamento. Há caras fechadas, sofredoras, arrastando seus corpos indiferentes, outras que tudo miram, o mais pequeno objecto diferente que a montra revela, em ânsias de consumo, mas, ainda há quem apenas passeie o seu tempo, sorrindo às vidas que passam. Por entre todos, alguns, poucos, mendigos estendem a mão, caras sem expressão, comidas pelo desespero, sulcos vincados nas mãos trémulas, duas ou três moedas repousando na lata a seus pés, mostrando que a vida se compra por pouco. Carmo é um misto de todas elas, no seu vestido elegante que cobre o seu corpo jovem e esbelto, olha os sorrisos com bonomia, enquanto, dos outros, aceita em desafio a resignação. A vida, para si, tem sido difícil mas, até agora, vai passando por ela sem desanimo. Basta-lhe um copo, uma gargalhada na noite, um acto tresloucado na madrugada e, nas já muitas manhãs de desalento, um sorriso de sua filha.
Tem como destino certo a Loja do Cidadão na Praça dos Restauradores. Ao abeirar-se do edifício olha os altos relevos esculpidos na pedra que encimam o edifício, tenta lembrar o nome do seu autor mas a memória dos seus tempos de escola perdeu-se na droga liquida que todas as noites vai consumindo. Entra e não pode deixar de observar a estrutura magnifica das escadas que se estendem à sua frente. Aqui lembra-se do Arquitecto Cassiano Branco como o autor deste projecto, arrojado face ao ano da sua concepção, lembrança ajudada porque acabara de ler uma pequena lápide indicativa com o seu nome e data. Vai direita ao cliché do Instituto de Segurança Social, depara com uma enorme fila de utentes aguardando, todos com caras de circunstância e cansaço perante a espera forçada. Faltam cinquenta e cinco números para a chamarem:
Com os diabos, vou ter de esperar imenso e, para mais, com Clara ao meu colo”.
Senta-se numa cadeira oferecida por um homem de meia idade que, solícito, se levanta.
- Obrigada! É muito gentil!
Gentileza, uma ova! Obrigação! Tenho uma miúda ao colo, que diabo!”.
Tenta passar pelas brasas mas Clara, sempre remexida e faladora, não o permite. Na maioria das pessoas espelha-se o cansaço, a inquietação por algo mal resolvido na manhã que avança, numa apatia sistémica.
O tempo foi passando, já ultrapassara o meio-dia quando alguém chamou:
- 251!
Era a sua senha. Deu um pequeno pulo da cadeira, acorda completamente para a realidade e agarrada à mão de Clara vai em direcção ao compartimento três, número que visionara no quadro electrónico pendurado na parede frontal.
- Bom dia!
- Boa tarde! - respondeu a funcionária com voz que denotava já algum cansaço, face ao difícil trato com utentes que procuram ali, na cadeira à sua frente, descarregar as frustrações de uma vida – o que deseja?
- Um subsídio de desemprego! Tenho uma filha de três anos – linda não é? – e não trabalho.
- Papel do seu último empregador?
- Não tenho! Despediu-me sem mais nem quê!
- Mas deve ter-lhe entregue uma declaração com o motivo de despedimento!
- Já lhe disse – Carmo começava a estar mal disposta com a insistência da funcionária – não percebe que nada me deu?
- Olhe, menina, nada lhe posso fazer! Quando trouxer o papel que pedi, apareça! Boa tarde!
E ao mesmo tempo que encerra, por si, a conversa, carrega no interruptor que impulsiona o número seguinte no quadro electrónico.
Maria do Carmo, contrariada, levanta-se:
- A senhora não pode ser mal-educada! Eu tenho direito a um qualquer subsídio!
A funcionária levanta os olhos e vislumbra reminiscências de álcool nos olhos da sua interlocutora. Ela também sabe o que são dificuldades, conta diariamente os euros que restam e os dias que faltam até usufruir de outro parco salário, mas pelos olhos dos muitos que há sua frente se lamentam, aprendeu a ler a mensagem que transmitem. E sentindo as palavras que pronuncia, desfere a acusação.
- Quando estiver sóbria, apareça, mas... com o papel!
Clara chora presa ao pescoço da mãe. Carmo já preparara a resposta, com a sua costumada agressividade, mas retrocedeu perante o choro da filha. Dá meia volta, furiosa, e prepara-se para sair dali. Os soluços estavam prestes a saltar, sem remédio, na frente de todos os que ainda aguardavam. Rapidamente, contornou a esquina próxima, enquanto para si reclamava justiça:
Que diabo! Preciso deste dinheiro para refazer a minha vida! Como vou dar de comer à minha filha?”
- Menina!
Uma voz de homem. Carmo, de costas, sentiu o chamamento. O tom de voz dizia-lhe:
Utiliza o teu encanto de mulher”.
Pára e volta-se, em gesto estudado.
- Eu gostava de a ajudar!
Um homem de meia idade, nos cinquenta anos, sorria com olhos gulosos.
Perante aqueles olhos interrogativos, Clara fica silenciosa, olha na direcção do homem que interpela sua mãe. Dois segundos depois inicia um choro baixinho, agarrando-se, de novo, ao pescoço. De certo, tem reminiscências de outras abordagens semelhantes.
- Cala-te, Clara!
Carmo disse-o com voz baixa, mas determinante. O choro passa a ser imperceptível mas as lágrimas caiem molhando a sua cara triste.
- Cala-te, por favor!
Sorri na direcção do homem e deixa que se aproxime de si. Há pessoas a olharem.
- O senhor deseja?
Carmo percebe a situação, sente a necessidade de aceitar a ajuda proposta. Seu sorriso é cativante. De facto, sabe que é bonita, agrada aos homens e eles vão, normalmente, na sua conversa. Só Clara está a mais naquele quadro de conquista.
Mas, talvez, seja mais cativante para ele mostrar que tenho uma filha com necessidades”.
Na sua mente passa, em filme apressado, corrosivo, a sua imagem de criança dormindo, despertada por mãos macias, violadoras de sonhos... para mais tarde adormecer, de novo, pelo cansaço da alma em pesadelo sobrante.
- Quer vir comigo? Dou-lhe boleia para onde desejar e falaremos na ajuda que me proponho dar...
Passa o seu braço forte sobre a cintura de Carmo, estreita-a a si e caminham para a porta. De novo, passa junto à escada projectada pelo Arquitecto Cassiano Branco, que já não lhe capta a atenção. No momento da saída, envia um sorriso convidativo ao seu par.
Rapidamente, na sua cabeça oca a quaisquer aceno externo, deixa-se conduzir ao aparcamento do Restauradores e param junto a um Mercedes, quase de ultimo modelo. O homem abre a porta de trás e comenta:
- Felizmente, tenho a cadeirinha de minha neta. Sente a sua menina e aperte-lhe o sinto. Depois... sente-se à frente, a meu lado.
A parte final da frase foi concluída com mais ímpeto, imperativa. Carmo não hesita e faz o que lhe pedem. A partir daqui entende que não deve emitir qualquer sinal discordante.
Enquanto põe o cinto de segurança sente a mão do homem subindo pela sua coxa.
- Mário, é o meu nome!
Carmo, num primeiro momento deixa progredir aquela mão opressora, conta para si cinco segundos, tempo suficiente para que seja consumado o acto explorador e ao sentir o contacto com o seu ventre, afasta a mão, fazendo um gesto de cabeça a lembrar a presença de sua filha no carro.
Mário sorri satisfeito, arranca na direcção à saída. Sente-se ruborizar, está antevendo o momento seguinte em que pegará na mulher e a possuirá num frémito agressivo, como lhe é usual.
Porque me deixo subjugar assim?”, pensa ela, num leve encolher de seu corpo.
Foi o que se passou, efectivamente, pouco depois. Mário entra com o carro numa garagem privativa, arruma-o a um canto, pára o motor, olha ao redor confirmando o isolamento desejado, mira o assento traseiro onde Clara havia adormecido com o calor do ambiente e a trepidação da viatura, sai e dá a volta aproximando-se da porta do lado de Carmo. Abre-a, sua mão vai direita ao manipulo que faz descer o encosto do assento onde Carmo está expectante.
Um gesto estudado, sem dúvida.
Carmo deixa-se ir no movimento lento de descida, vai-se aconchegando à cama que se vai construindo, já em baixo, lança seus olhos assustadiços a Mário que, em gesto rápido e, possivelmente, muito praticado, entra no carro aproveitando o espaço que o Mercedes permite usufruir, abre a braguilha das calças, deixa sair o seu potente adjectivo, hirto, pronto para a acção. A Carmo mantém-se na posição, aguardando o inevitável. Como muitos anos atrás, sabe aceitar... Sente duas mãos que já não exploram, que mandam, levantando a saia, puxando as calças de renda, afastando as pernas e, então sim, viu cair sobre si Mário, vermelho de ansiedade, penetrando-a de uma só vez, com pressão. Foram uns curtos 30 segundos, Carmo deixa-se ir na onda, sente-se incomodada com o vigor opressivo, até que o homem explode num esgar frenético que acorda Clara.
- Mamã, mamã!
O choro torna-se maior ao olhar o espectáculo que não percebe mas que lhe está sendo oferecido.
Carmo tenta soltar-se, desperta sob o terror de ser apanhada por sua mãe num misto de vergonha mas, ao mesmo tempo, de anseio que tal acontecesse, sente um arrepio perante o pensamento do que está Clara presenciando. Não consegue, Mário é grande e está deitado sobre si, esgotado na sua impotência momentânea.
- Deixa-me! Já te vieste! - ainda reclama Carmo empurrando, infrutífera, aquele possante corpo masculino.
- Hum... Não! Quero mais! Estou quase a conseguir.
- Por favor! Minha filha...
- Cala-te, sua puta! Não tenhas medo, eu pago-te.
- Minha filha...
Carmo deixa soltar as lágrimas. Olha a cara de Mário muito perto da sua que se começa a movimentar. Ele sente que está regressando ao activo.
Era, assim, no passado o outro homem.
As lágrimas de Carmo incentiva-o, dá-lhe redobrada força, sente-se dominar a situação. É agora que está começando o gozo. O ritmo é avassalador, deixa pender a cabeça sobre os lábios de Carmo que não lhe devolve o beijo mas colabora – claro, sempre – na actividade.
Se não faço o que ele quer não me dá nenhum dinheiro...” o balanço continua, cada vez mais frenético. A filha chora.
Meu Deus, faz com que ele acabe depressa...”
Foram cinco longos minutos até que aquele corpo entrasse em tremura e se despedaçasse, de novo, num grito rouco. Momentos depois, ainda arfando, deixa-se escorregar para trás e fica de joelhos frente ao corpo usado de mulher.
Sentindo-se livre, tenta levantar-se, o que Mário não gostou.
- Achas que tua filha também pode querer isto?
E pega com a mão no seu aparelho murcho.
- Para ela, talvez arribe!
Carmo lança um grito, um urro de fêmea ferida, lança seus pés contra o peito daquele energúmeno, atira-o com violência contra o tablier do Mercedes. Ele reage com a dor e abre uma brecha para a sua saída. Com as lágrimas correndo em catadupa, abre a porta de trás, arranca Clara do seu lugar e corre com ela nos braços. No carro fica a sua pequena carteira de documentos, as calcinhas de renda... o sentimento do que gostaria de ter feito ao homem do passado, à imagem viva do monstro que se abatia meigo, brutal, à socapa da escuridão de seu quarto e a deixava hirta, incrédula, dorida, sem reflexos, apanhada entre o sonho bom e o pesadelo, quieta nos pensamentos e nos gestos... e o eventual dinheiro que pagaria o serviço e as próximas refeições de Clara.
- Minha filha! Nunca mais farei uma coisa destas! Por favor, perdoa-me, perdoa-me.
A água que saía dos olhos de ambas confundiam-se nas faces das duas mulheres, uma que descera ao ultimo degrau da escala da vergonha e a outra que parecia nascer para uma vida terrível.
- Nunca mais, nunca mais!
Foram as últimas palavras daquela Mãe desfeita, desfigurada pela dor. Percebera a monstruosidade a que submetera sua filha, a abominável vida em que entrara, a permanente fuga que em si coexistia.
O que fazes aqui, Carmo, quando será o momento em que te libertas? Tens uma filha, ela tem direito a uma infância que tu não tiveste...”
Os prédios altos que se sucediam sobre a sua cabeça, a rua que, inicialmente, sob os seus olhos parecia remexer-se e com buracos, aplainaram-se e Carmo, mantendo muito chegada a seu peito a filha que, aos poucos, deixara de soluçar, sente a brisa ligeira enxugar seus olhos húmidos e uma força interior dizendo que a hora era chegada.
Quem a olhasse, naquele momento, veria um leve sorriso de determinação abrir-se como uma flor...

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