I

Setembro 2008, Carvalhinhos, Portugal



Se me ponho a cismar em outras eras

Em que ri e cantei, em que era querida,

Parece-me que foi noutras esferas,

Parece-me que foi numa outra vida…


E a minha triste boca dolorida,

Que dantes tinha o rir das primaveras,

Esbate as linhas graves e severas

E cai num abandono de esquecida!


E fico, pensativa, olhando o vago

Toma a brandura plácida dum lago

O meu rosto de monja de marfim…


E as lágrimas que choro, branca e calma,

Ninguém as vê brotar dentro da alma!

Ninguém as vê cair dentro de mim!

(Florbela Espanca – Sonetos – Lágrimas Ocultas)





- Sofrimento inaudito! Ansiedade, insatisfação, feridas incuráveis! Há dias em que nada mais consigo fazer do que ler e reler a poesia desta mulher de personalidade contraditória, de um temperamento amoroso incomparável, mas tão cheia de desencontros. É como um espelho para mim, vejo e revejo-me no seu sofrimento, na felicidade que não atingiu, no desespero da sua vida, na agonia da morte. Eu também a quero! Porque já não sei como viver!

João Maria diz-se um escritor que não se reencontra nos seus escritos. O acto de escrever tem sido um exercício de sofrimento. Reclama não desejar fazê-lo porque não gosta da sua escrita, mas o desespero atira-o para as folhas de papel onde as palavras não ganham vida.

Talvez exista o pânico da folha em branco ou o medo de não ser capaz de abordar o tema na perspectiva certa. João Maria já escreveu um livro, publicado e considerado um best seller.

Mas foi o único.

Na altura, esse escrito conseguiu envolver e mobilizar o leitor. Desde então, não mais o conseguiu. O papel é a sua obsessão, todos os dias frente a ele procura a faculdade criadora. Escreve muito e muito mais deita fora, amarrotando as páginas com fúria. Não concentra as ideias ou elas não são bastante boas para serem por si aceites. Mil vezes decidiu não mais escrever, um milhão de vezes voltou à secretária para tentar de novo.

Passou a ser a sua doença, como diz sua mulher.

Presentemente, vive numa aldeia no interior beirão, seu refugio irreal, lugar para onde se retirou na procura de sua musa ou, talvez, como meio de se libertar do jugo familiar. João Maria não o confessa, mas a existência de um filho deficiente no seu seio contribuiu para a decisão. Até porque existe na sua mente um sentimento de culpa. Ricardo nasceu com imperfeições genéticas. João Maria nunca se perdoou pelo tempo que forçou a espera de sua mulher quando o estado de emergência se impôs para aquela nova vida florir. Os médicos haviam dito, há 3 anos, que o tempo fora determinante para as lacunas cerebrais que hoje subsistem. A vida de Ricardo passou a constituir a principal devoção de sua mãe e João Maria interiorizou a causa do dano físico de seu filho. Acabara de lançar o seu livro, a euforia era enorme, o resultado das vendas, que o iam deslumbrando, ofuscava decisivamente todos os outros assuntos.

O filho pagou esse fascínio.

Mas a vida vingou-se em João Maria. A sua relação com a mulher nunca mais foi a mesma e sobressai a censura nos olhos da filha mais velha. Talvez por isso, João Maria procurou o seu canto onde, hoje, curte as mágoas frente ao papel, sem qualquer sucesso. Há uma expiação psicológica em curso, lenta, demolidora.

No seu encontro diário com os caminhos da serra, Carvalhinhos é uma pequena aldeia, eminentemente rural, situada no meio dos pinheiros. Caminhos sinuosos, veredas estreitas, numa paisagem calma e reconfortante. Casas de xisto que condicionam todo o panorama campestre, onde algumas residências de estrangeiros se destacam pelo sua perfeita integração na paisagem. Aqui, existem 5 diferentes vidas entre duas dezenas de pardieiros caídos sobre o tempo que ali deixou de contar. Duas, de gentes locais que resistem à passagem das estações da vida, outras tantas de ingleses, descobridores da essência da pureza do campo, e a última de João Maria.

Um pequeno riacho corre no fundo de uma vereda.

O som da água crepita nos ouvidos dos poucos aldeões enquadrando a bucólica imagem circundante. Uma povoação, como muitas existentes no País, abandonadas pelas mutações constantes dos comportamentos onde sobressai a regressão demográfica justificada pela procura de melhores vidas no universo das ilusões que seus filhos procuram com sofreguidão. Tal é a migração que só fica a calma circundante, a paisagem chorando o seu abandono, o futuro comprometido. Por todas essas razões, surgem os perscrutadores do não stress, que vão dando um pouco de vida a esses lugares, nascem pontos de interesse turístico, vêm-se gentes chegando de fim-de-semana.

Fomenta-se, assim, a artificialidade.

As aldeias dormitam durante a semana acordando para dois buliçosos dias. Restam os homens de outras terras, normalmente vindos de climas agressivos, que procuram a felicidade final de suas vidas adiantadas, interagindo com a natureza, e dão vida à paisagem. Falta, no entanto, a agressividade social, para repensar as aldeias, suspender a desertificação, criar motivos para seus velhos permanecerem com qualidade de vida. Falta adquirir seus pardieiros, recuperá-los, reconvertendo-os em habitações condignas dos idosos. Dar vigor aos cuidados de saúde, com unidades de solidariedade, serviço de refeições, integrar os ainda ocupantes destes locais privilegiados em servidores em causa própria, dando sentido às suas vidas. E, quem sabe, ser então escolhida por gentes com vitalidade para manter crepitando a seiva da sustentabilidade do meio rural.

Pois Carvalhinhos poderia ser uma dessas aldeias.

Esperando a concepção da ideia transformada em projecto.

João Maria todos os dias, ao romper da manhã, empreende uma caminhada pela serra, sai de casa, dá os primeiros passos sobre a pedra que calça a estrada que serpenteia as casas na direcção da única obra municipal visível, um reservatório com alguns hectolitros de água que permite no verão regarem-se as pequenas culturas que enquadram as rochas. Esse pequeno depósito, além de servir os insectos, transportando-os num circuito de água viva, ainda alberga as brincadeiras das poucas crianças que no verão visitam a aldeia.

Mas, no seu passeio matinal e solitário, não olha esses pormenores que poderiam eventualmente constituir de fundamento à história que incessantemente procura no papel e que, possivelmente, os seus leitores ainda aguardam.

Caminha devagar, de braços atrás da costas, um pouco curvado, não pelo peso dos seus 35 anos mas, porventura, curtindo as suas desventuras. Ladeia o reservatório e inicia a íngreme subida da encosta. Uma luxuriante vegetação aguarda-o no alto dos 800 metros de serra, uma surpreendente vista sobre os muitos pequenos povoados encobertos pelas matas e todas servidas por estradas em linhas sinuosas.

No cimo do monte, encontra a calma que procura.

Aí fica em contemplação, passa em memória recordações, dormita outro tanto. Quando se levanta e inicia o regresso sente a cabeça mais leve mas não liberto da sua constante expiação. E aos poucos, porque também a descida apresenta alguns escolhos, a sua cabeça vai pendendo mais insistentemente. Quando, de novo, circunda o reservatório de água e enxerga a poucos metros a primeira casa da aldeia, o peso em seus ombros é tal que aparenta ter o mundo desabado sobre si, inexoravelmente.

A caminhada final é mais lenta, quando os pardieiros se sucedem.

Na curva fica a primeira das duas casas de ingleses, de pedra cravada nas paredes, telhados de cor rosada em contraste com o verde dos pinheiros, janelas de madeira com vidros duplos que revelam o conforto do seu interior, relva cuidada, pequeno jardim de inverno sobre uma frondosa árvore-chorão, minúsculos mantos de relva bem trabalhada em dois ou três socalcos sobre o riacho que abastece uma piscina de dimensão exígua, mas acolhedora.

João Maria passa sem sequer levantar a cabeça.

Se tal fizesse veria seu vizinho estrangeiro sentado junto à piscina, com um largo chapéu tapando sua cabeça calva, seguindo os seus passos pesados.

- Bom dia, senhor João!

É um dos outros aldeões ainda sobrantes deste monte de casas pobres e arruinadas.

João Maria, no seu passeio soturno, só alguns passos adiante deu conta do cumprimento. Hesita, dá dois passos mais tímidos, ergue um pouco a cabeça, na sua cara nota-se um pequeno trejeito, levanta a mão e acena em gesto esquivo, continuando sua caminhada. Mas adiante pressente algo de diferente, não usual para seus olhos de hábitos arreigados. Sem cuidar de seu resguardo, levanta esses seus olhos sem expressão e fixa aquela figura conhecida. A sua face reluz por um mínimo instante, há uma cintilação visível mas, rápido, volta à sua esfinge habitual.

Quem se mostra na frente é sua mulher, Claudine.

32 anos de idade, morena, cabelo preto luzidio, olhos grandes expressivos, cara de um certo exotismo latino. Saia e casaco castanho, t-shirt bege, um colar de madre-pérola entrelaçado com pequenos artefactos.

Uma mulher saída da cidade, olhos doces onde sobressaem sombras de tristeza.

- João, ainda de ombros descaídos?

- Que queres mulher? Vens aqui para me recriminar, fazer-me mais infeliz?!

- Não João! Mas esperava ver-te mais levantado.

- Como posso? Diz-me?

As vozes soavam excessivamente alto para aquela pacata terra serrana. O vento levanta-se e numa rajada rápida ergue algum pó da calçada, parecendo expressar o descontentamento perante o diálogo rude.

- Vamos entrar? Falamos lá dentro! – refere Claudine, apaziguadora.

João Maria empurra a porta entreaberta. Na terra ninguém as fechava, a civilização estava longe e, também, as suas inseguranças. As sacas de broa penduradas no exterior exibem as poucas casas habitadas. O padeiro dá a volta pelas serranias e passa por ali pelas sete da manhã. Os aldeões comem a broa com café antes de assaltarem suas leiras, cavando e deitando a semente à terra para mais tarde levantarem o milho, as couves, as batatas ou o tomate, ingredientes da sopa do fim de tarde. Naqueles pequenos quadrados de lavoura tira-se tudo o que é necessário para a subsistência. João Maria já tinha a sua enxada, mas, ainda, não se sentira bem com ela. O stress teria de o abandonar antes de meter a cara à terra. Nessa altura a sua cura estaria perto de ser atingida.

- Entra! Vou tomar o meu almoço! Acompanhas-me?

Claudine hesita. Decerto iria dizer que não, pois tomara algo em Penela, há cerca de meia hora atrás. No entanto, com um meio sorriso respondeu:

- Se tiveres leite e quaisquer flocos!

A casa por dentro tinha o aspecto semelhante aos pardieiros velhos que se decompunham na rua que constituía a única via de acesso da povoação. Fria, paredes não rebocadas, frestas que permitiam a visão da cal e pedra que outrora servira de argamassa para a sua construção, hoje porta de entrada de insectos, tecto com barrotes meios podres e, há muito em risco de derrocada, chão de cimento. Junto à janela, talvez o único sitio agradável do compartimento, uma escrivaninha antiga, onde se nota a azafama diária de papeis remexidos, sobre uma pesada carpete de ar acolhedor.

O seu canto de escrita, o seu lugar de insucesso.

João retira do mosquiteiro um jarro de leite, um prato com manteiga, broa da saca pendurada num dos cantos da cozinha junto à lareira. Retira sobre o forno de lenha ainda quente uma cafeteira de café feito por si na véspera. Coloca tudo sobre a mesa coberta por uma toalha de plástico de flores estampadas:

- Senta-te num desses bancos! Como vês, mantenho as maneiras desta gente. Não tenho frigorífico e, de manhã, como broa com café. É excelente! Depois da volta, que sempre faço logo que me levanto, este café morno aquece-me o estômago e prepara-me para aguentar o dia. Lá para o meio da tarde, como uma sopa e às sete estou na cama. A casa não tem, ainda, electricidade. Aliás, não sei, sequer, se a vou ligar.

Claudine hesita, engole a eminente recriminação que estava preste a sair de sua boca perante o cenário onde acabara de entrar, e diz com ternura:

- João! Quando regressas a casa?

- Sabes que vim para aqui no intuito de escrever. Ainda me estou ambientando...

- Sei que fugiste, disso tenho a certeza! Se foi para escrever talvez, mas para fugires à cara do teu filho Ricardo, isso sim!

- Não sejas sarcástica! Eu preciso de me reencontrar!

- Encara a vida, João Maria! Percebo os teus medos, as tuas angustias, a culpa que quiseste assumir mas, recorda, ninguém te atirou contra ela. Talvez a indiferença que te votou a nossa filha Marie! Foi essa a sua maneira de reagir à doença do irmão e, de facto, culpa-te. Mas não se pode fugir das provocações. É enfrentando os males que se encontra a cura dentro de nós.

- Se foi para isto que vieste, bem podes voltar e JÁ!

A ultima palavra foi atirada com raiva, sem cerimónia. João Maria estava desejoso de pôr fim na conversa e se preciso fosse, encaminharia Claudine para a porta da rua.

- Não vim para isso, efectivamente! Precisava de te ver, de estar um pouco contigo! Dizer-te que te ainda amo e que gostaria de te ver regressar! Que te compreendo e quero ajudar. Mas, como sabes, não posso deixar sozinho Ricardo senão propunha-me viver contigo aqui uns tempos para, de novo, nos habituarmos a estar juntos.

- Também sabes que não estou preparado para isso!

A voz de José Maria continuava dura, nem as palavras ternas que acabara de ouvir da boca de Claudine tiveram o condão de o acalmar.

- Não! Desculpa, mas vais embora! Não posso, por ora, fazer nada. Talvez um dia, mas não sei se será tão breve assim. Desculpa, mas tenho de sair.

Levanta-se, alcança a porta e sai deixando-a escancarada. Claudine ouve seus passos apressados, quase em corrida, descer a calçada rumo a sítio incerto.

Estava, apenas, fugindo de si mesmo.

De seus olhos saiam grossas lágrimas e a custo sustinha os soluços que se preparavam para explodir a todo o momento. Talvez as nuvens, que nos últimos minutos toldaram a luminosidade da serra e se abatiam sobre a aldeia, quase tocando os pinheiros lá no alto, tivessem contribuído para entristecer aquele homem e não permitissem o descanso da sua alma perturbada.

Claudine deixa a casa, encosta a porta ao sair, não antes de deitar um ultimo olhar sobre os toscos moveis que constituíam agora a vida de seu marido, anda cerca de cem metros para o lado contrário a que João Maria desaparecera, acerca-se do seu carro e parte com destino a Aveiro onde continua residindo.

Na sua alma triste vai a esperança de um dia tudo se acertar, com o marido, com Marie, com Ricardo estabilizando a sua dependência sobre a família, com a sociedade, com o mundo...

Começa descendo a encosta do monte pela estrada sinuosa que a vai conduzindo ao planalto central, a sua memória cria alguns flashs de sua vida familiar, onde se habituou a ver o seu marido como um extremoso pai e um permanente apaixonado de si própria e que nada fazia prever um desfecho tão radical de separação. Tinham regressado de França havia poucos meses depois de um conturbado período de vida, procurando a paz perdida na longínqua Cidade de Paris que haviam deixado para trás. E Claudine acha que a tinha encontrado na sua casa de Aveiro, no amor de sua filha Marie que com eles viera de França, no nascimento de Ricardo, apesar da sua deficiência congénita. Não acredita que tenha sido por ele que João os abandonara. Tinha de haver algo mais na sua cabeça ou por qualquer outro acontecimento que desconhecia. Que tinha de entender...

Comentários

Sara disse…
Está tão bom e tão belo... E fiquei assim... sem saber o que mais te dizer, mas sem conseguir sair sem te dizer algo :) Meu pai, o escritor!

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